A 11ª medida

Publicado por: redação
02/09/2016 07:14 AM
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Pela boa-fé invocada por Dallagnol, o pacote do MP precisa incluir o necessário contrapeso

*Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, edição de 02 de setembro de 2016. Clique aqui para ler o texto no site do jornal.
O procurador da República Deltan Dallagnol publicou artigo nesta página defendendo o pacote de medidas contra a corrupção produzido pelo Ministério Público Federal. O pacote é uma alteração do sistema penal e processual penal brasileiro como um todo, 10 Medidas contra a Corrupção é apenas o atraente nome que lhe foi dado.

O artigo subscrito pelo respeitado procurador da República concentra-se basicamente na questão da prova ilícita. Para tanto, parte de duas premissas: 1) O Brasil é exigente demais com a licitude da prova e muitos casos são anulados por causa disso; 2) importamos pela metade dos Estados Unidos disciplina sobre a prova ilícita, o que acaba dificultando demais o trabalho da polícia no Brasil.

A lógica dele é a seguinte: nosso país precisa ser mais tolerante com a prova ilícita, permitindo, por exemplo, que provas ilegais colhidas de boa-fé sejam usadas para acusar um cidadão. Somente assim, dá a entender o autor, as forças do Estado poderiam combater o crime com mais vigor.

A intenção parece das melhores: solucionar o grande déficit causado pela impunidade, permitindo maior eficácia na repressão penal. Do que, no entanto, o procurador talvez não se dê conta é que o Brasil é muito mais tolerante com a prova ilícita do que se imagina. Muito mais até do que qualquer país civilizado.

Boa parte das buscas domiciliares no País é feita sem mandado judicial e validada com a alegação do policial de que contaram com o consentimento do morador (dados do Núcleo de Estudos da Violência da USP). Boa-fé.
Pesquisa recente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) mostra que a esmagadora maioria dos presos não é alertada sobre seus direitos no caminho até a delegacia. Não há um julgado de tribunal anulando processo criminal por causa disso. Boa-fé.

A lei só permite escutas telefônicas de no máximo 30 dias, mas os tribunais estão abarrotados de decisões que permitem a relativização desse tempo, validando escutas que chegam a durar meses, até anos. Boa-fé.
O próprio Innocence Project, entidade americana que analisa casos de erros judiciários nos EUA, alerta que duas das principais causas de condenações injustas são má conduta policial e erro de procedimento dos órgãos de acusação. Imaginem o resultado do trabalho se fosse feito no Brasil!

A discussão proposta pelo procurador é interessante. E fica ainda mais interessante quando se constata que em países como os EUA a mesma severidade que a lei dispensa aos delinquentes dispensa também aos maus policiais e agentes públicos incumbidos da investigação. O site Conjur noticiou recentemente que uma promotora naquele país foi condenada, afastada e poderá ser presa simplesmente porque vazou informações sigilosas de um julgamento para os jornais.

Todo modelo jurídico precisa funcionar com pesos e contrapesos. É o que garante equilíbrio ao sistema. É como um automóvel, que tem acelerador e freio. O conjunto das dez medidas foi construído com a marca inversa. Importa o peso, mas ignora o contrapeso. Nada que não possa ser corrigido num debate maduro e equilibrado.

Basta ver que o pacote não oferece um único antídoto contra os excessos, ao contrário, sempre que podem os procuradores se manifestam contra qualquer tentativa de criminalizar seus próprios desvios, como fizeram recentemente no tocante ao projeto que altera em boa hora a lei de abuso de autoridade. Se é verdade que o pacote defendido por Deltan Dallagnol só permite uso de prova ilícita obtida de boa-fé, qual o problema de criminalizar a prova ilícita obtida criminosamente, como prevê o citado projeto, que eles demonizam? Esta, aliás, não seria uma importante 11.ª medida contra a corrupção, já que a corrupção é irmã gêmea dos abusos e excessos do Estado? Por que tamanha resistência? A resistência acaba abrindo os olhos da sociedade para o fato de que as intenções, que num primeiro momento pareciam ótimas, podem não ser tão boas assim...

O mesmo ocorre com o tal teste de integridade, outra medida do pacote, neste caso, uma bugiganga que se diz importada de Hong Kong. Se ele não será usado para fins ilícitos, qual o problema de criminalizar o agente estatal que incita ou instiga o cidadão a praticar um crime só com o fim de prendê-lo em flagrante? Trata-se de excelente medida contra o abuso e, obviamente, contra a corrupção policial que os procuradores relutam a aceitar, quanto mais a colocar no seu pacote de medidas contra a corrupção.

A propósito, o que não está muito claro é se o teste de integridade será obrigatório também para os membros do Ministério Público (não seria razoável a discriminação) e se haverá transparência no resultado, ou melhor, se o cidadão comum poderá acessá-lo publicamente. Se a resposta for positiva, aí, sim, haverá um grande avanço na transparência dos órgãos ligados ao Judiciário, que ainda insistem em manter a portas fechadas as denúncias de malfeitos que pesam contra seus integrantes.

A sociedade aplaude a iniciativa das dez medidas, e o País precisa de muitas medidas, não dez, mas talvez cem medidas contra a corrupção. O que, no entanto, as pessoas mais atentas estão debatendo com preocupação é que as modificações propostas pelo Ministério Público parecem mais uma luta por espaço e poder no processo investigatório e menos um debate que envolva o conceito de justiça, num sentido mais amplo. Essa carta branca para os órgãos de investigação só existe em regimes totalitários.

Para que a boa-fé invocada possa ser mais bem compreendida o pacote precisaria começar enfrentando um importante desafio, que é incluir o contrapeso necessário, a 11.ª medida, demonstrando à sociedade que estão dispostos a cortar na carne e responder criminalmente quando ficar comprovado que tenham praticado desvios e excessos durante a investigação. Do contrário, é gol com a mão.
Fábio Tofic Simantob

Advogado, é presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa.

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