A justa diferença dos iguais

Publicado por: redação
02/07/2010 02:58 AM
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A justa diferença dos iguais - Marcelo Girarde(*)

Bonum ex integra causa, male ex quoqumque defectu ? o bem é medido pela totalidade do que foi efetuado, o mal por qualquer defeito de percurso, de partida ou de chegada.

?Uma vez aperfeiçoada a lei, a ação é válida se é conforme, não se é útil. Deveria ser, ao invés, que o útil fosse fundamental... A finalidade da lei é o bem do próprio corpo social, seja em relação às partes componentes que ao conjunto das partes: deve ser um bem circular. Primeiro bem da lei é o coletivo, secundário o indivíduo. Mesmo se, na natureza, o indivíduo é o tijolo da ordem social, a lei deve pensar no conjunto; todavia, para salvaguardar esse conjunto, não pode esquecer o tijolo?. Utilizo-me deste trecho, retirado da obra ?O critério ético do humano? de A. Meneghetti, para suscitar uma reflexão acerca da criação, pelo CNJ, do Sistema de Estatística do Poder Judiciário, suas conseqüências para os Tribunais, os benefícios advindos desse ato e os cuidados que todos precisamos tomar, para que as análises e decisões levem sempre em conta as diferenças dos iguais.

CONTEXTO

No início do mês de agosto deste ano, o TJDFT encaminhou à Comissão Permanente de Estatística do Conselho Nacional de Justiça os dados estatísticos solicitados na Resolução N.15, de 20 de abril de 2006. Com esse ato, o CNJ determinou a todos os Tribunais do país o levantamento de indicadores que traduzissem a situação do Poder Judiciário brasileiro.

Criado pela Resolução N.04, de 16 de agosto de 2005 e regulamentado pela já citada Resolução N.15, o Sistema de Estatística do Poder Judiciário se apresenta como um dos principais instrumentos idealizados pelo CNJ, para cumprir as competências constitucionais atribuídas àquele órgão.

Para obter um ?retrato? da situação dos Tribunais brasileiros, foi exigido o fornecimento de 67 elementos estatísticos que servem de base para a elaboração de 68 indicadores básicos, divididos nas seguintes categorias: 1) Insumos, dotações e graus de utilização; 2) Litigiosidade; 3) Carga de trabalho; 4) Taxa de congestionamento; 5) Recorribilidade e reforma de decisões; 6) Acesso à Justiça; 7) Maiores demandas e participação governamental; 8) Atividade disciplinar; 9) Outros.

Apesar de iniciado em 2003, com o diagnóstico do Poder Judiciário patrocinado pelo STF, o movimento de levantamento de informações junto aos Tribunais só foi percebido como uma demanda concreta, por parte do Judiciário Federal e Estadual, de forma geral, com a regulamentação desse procedimento pela Resolução N.15, no início do 2º trimestre deste ano. Ao que parece, essa prática veio para ficar e resta aos Tribunais, nesse primeiro momento, realizarem os esforços necessários, para se adequarem ao que foi estabelecido pelo CNJ.

Para atender à demanda, o TJDFT, por meio de um grupo de trabalho designado por sua Presidência, reuniu esforços no sentido de levantar os dados solicitados com relação ao ano de 2005 e 1º semestre de 2006. Não podemos negar o árduo trabalho a que foram submetidos os setores administrativos e judiciais do nosso Tribunal para compilar, em um curto espaço de tempo, dados que não estavam habituados a coletar. Somado a isso, nos deparamos com a necessidade de interpretar e definir claramente os critérios a serem utilizados para filtrar as informações disponíveis nos nossos sistemas. O objetivo era chegar exatamente, se não o mais próximo possível, aos números que retratassem o que estava sendo solicitado pelo CNJ, sobretudo pelo fato de que os conceitos dos elementos estatísticos elaborados pela Comissão Permanente de Estatística davam margem, por vezes, a interpretações dúbias, subjetivas ou incompletas. O trabalho foi realizado e entregue dentro do prazo estipulado pelo Conselho.

DIFERENÇAS E IGUALDADES

Assim como o TJDFT, outros Tribunais nos diversos Estados enfrentaram, com maior ou menor grau de intensidade, diversas dificuldades no levantamento desses dados. O trabalho exigiu a mobilização de vários setores e pessoas, em meio a uma volumosa e crescente demanda judicial que permeia a realidade das Cortes de Justiça do nosso país. O impacto, em uma primeira leitura, gerou resistências e questionamentos sobre a utilidade e finalidade dos dados estatísticos, seja pela novidade, como pela inexistência de uma cultura de medição do desempenho e dos resultados dos serviços de prestação jurisdicional nos Tribunais.

Louvamos a iniciativa do CNJ quanto à ação de estabelecer um marco histórico relativo ao quadro situacional do Poder Judiciário. Não restam dúvidas quanto à importância e relevância de medir o desempenho dos Tribunais sistematicamente, ainda que os indicadores elaborados e selecionados pelo CNJ, para compor o Sistema de Estatística do Poder Judiciário, não tenham sido suficientemente discutidos nos contextos em que são aplicados (os próprios Tribunais) e que outros indicadores, que poderiam retratar importantes ações que vêm sendo implantadas e utilizadas, não foram adotados, a exemplo dos investimentos em sistemas de resolução alternativa de conflitos.

Duas questões, nesse primeiro momento, fazem-se fundamentais na interpretação e análise dos dados por parte do CNJ. A primeira, aponta para a necessidade de uma ponderação justa quanto às diferenças regionais de cada unidade da Federação e o quanto tais diferenças influenciam a realidade dos Tribunais Estaduais. Cultura, geografia, situação sócio-política, economia, densidade populacional, renda per capita e nível geral de escolaridade são alguns fatores exemplificativos que contribuem para a diversidade dos contextos, nos quais estão representados os órgãos do Poder Judiciário.

Para ilustrar, poderíamos citar o caso do elemento estatístico denominado ?Casos Novos de 2º Grau ? CN2º?, que representa todos os processos originários e recursais que ingressaram ou foram protocolizados na Justiça Estadual de 2º Grau, no período base (ano ou semestre), excluídas as Cartas Precatórias, de Ordem e Rogatórias recebidas, bem como outros procedimentos passíveis de solução por despacho de mero expediente. Esse único elemento estatístico serve de base para compor a fórmula de indicadores que medem a carga de trabalho, a litigiosidade e a taxa de congestionamento. Se levarmos em consideração as particularidades de cada Estado e/ou região ao analisar esse quesito, não seria uma imprudência refletir sobre as variações a que o mesmo seria submetido e as conseqüências refletidas nos resultados estatísticos de cada Tribunal. Considerar o grau de acesso de um advogado e seu cliente à Segunda Instância, em Estados como Amazonas ou Pará, onde as distâncias geográficas dificultam os procedimentos necessários para os recursos, permite uma análise sobre a desigualdade do volume anual de casos novos no 2º Grau em relação a outros Estados que possuem uma menor extensão territorial e uma maior proximidade dos municípios em relação à capital. Se relacionarmos outros fatores que poderiam influenciar na demanda, como grau de industrialização, população da área rural, nível médio de escolaridade, presença de grandes centros urbanos e renda per capita, chegaríamos mais próximos de uma explicação plausível sobre o fato dos Estados do Centro-Sul do país possuírem uma demanda de casos novos no 2º Grau duas vezes maior, comparada aos Estados posicionados nas regiões Norte e Nordeste. Para se ter uma idéia da importância do cuidado ao analisar instituições com competências iguais constitucionalmente (Tribunais Estaduais), porém inseridos em realidades diferenciadas, basta refletir para o seguinte dado estatístico: 42% dos casos novos por 100.000 habitantes na Justiça Estadual de 2º Grau estão concentrados no Rio Grande do Sul, Distrito Federal e Mato Grosso do Sul, de acordo com análise baseada nos números divulgados pelo CNJ, referentes ao ano de 2004. Desse volume, o Distrito Federal respondeu por 15% dos casos novos que ingressaram na Justiça de 2º Grau, no país, naquele ano, apesar de possuir uma população de apenas 2.300.000 habitantes. Comparado ao estado do Rio de Janeiro, que respondeu por 6% da demanda nacional em relação ao mesmo indicador, mas com uma população de mais de 15 milhões de habitantes, o Distrito Federal não seria tão criticado, à época, pela imprensa, pelo fato de apresentar a maior proporção de pessoal auxiliar da Justiça Estadual por 100.000 habitantes, caso aqueles que fizeram a crítica baseada nas estatísticas, tivessem levado em conta tais diferenças. Parece lógico constatar que demandas maiores exigem mais recursos para serem atendidas, sejam eles humanos, tecnológicos ou de infra-estrutura.

Diversas outras situações poderiam ser suscitadas aqui, utilizando a base de análise que leva em consideração as diferenças e particularidades de cada Estado. Porém, os exemplos citados parecem suficientes para chamar a atenção de todos aqueles que, direta ou indiretamente, venham a ter contato com os resultados passados e futuros das estatísticas relacionadas à situação do Poder Judiciário brasileiro.

A segunda grande questão que carece de especial atenção, quanto à análise e interpretação dos dados pelo CNJ, está relacionada com a sua utilização. Mais especificamente, a preocupação estaria nos atos que podem advir com base nas estatísticas. Não restam dúvidas que decisões tomadas, sem uma base concreta de informações confiáveis, tendem a apresentar resultados inferiores àqueles advindos de decisões baseadas em informações concretas, sobre determinada realidade, situação ou problema. O cuidado está, justamente, na necessidade de participação na tomada de decisão daqueles que sofrerão os seus efeitos. Reunir representantes dos Tribunais Estaduais, para discutir e entrar em consenso quanto às medidas a serem tomadas, com base nas informações que integram e integrarão o Sistema de Estatística do Poder Judiciário, é uma providência, no mínimo, bem-vinda.

Novamente, fica registrada a necessidade de levar em conta os diferentes contextos em que estão inseridos os Tribunais. Tanto quanto à análise das informações e suas conseqüentes conclusões, quanto à tomada de decisão que abranja a percepção das diferentes forças e fraquezas, recursos disponíveis e grau de organização das Justiças nos Estados. Sendo o Brasil um país com dimensões continentais, esse é, sem dúvida, um grande desafio que, entretanto, não deve ser menosprezado.

BENEFÍCIOS E OPORTUNIDADES

O levantamento dos dados previstos na Resolução N.15 proporcionou uma importante reflexão ao corpo administrativo e judicial do TJDFT. Foi possível, a partir dos indicadores, visualizar o desempenho do Órgão em relação a alguns aspectos da prestação jurisdicional e identificar os pontos que precisam de maior atenção e investimento. Hoje, sem dúvida, a Administração do nosso Tribunal possui informações mais consistentes para a tomada de decisão quanto aos esforços e as providências que resultem em maior agilidade no trâmite dos processos, na diminuição de ?gargalos?, na otimização de rotinas e procedimentos, bem como as diversas outras ações que contribuem para a melhoria dos indicadores e conseqüentemente para uma prestação jurisdicional de excelência.

Um exemplo concreto dos benefícios do levantamento estatístico proposto pelo CNJ está relacionado à taxa de congestionamento. Tal indicador mede a relação entre casos novos, casos pendentes de julgamento e os que foram efetivamente julgados no período. O resultado, entretanto, é percebido de forma geral, pois leva em conta os números de uma Instância como um todo (todas as Varas do Tribunal, por exemplo). A partir desse indicador geral, o TJDFT, utilizando a mesma fórmula, está identificando a taxa de congestionamento de cada Circunscrição. O objetivo é verificar quais fóruns precisam de maior atenção e investimentos para melhorarem suas taxas individuais, melhorando assim a taxa geral.

Outra ação originada da necessidade de prestar informações estatísticas semestralmente ao CNJ foi a elaboração do Manual Prático de Levantamento de Dados para o Sistema de Estatística do Poder Judiciário. A publicação é um instrumento de gestão que permite aos diversos setores envolvidos no levantamento dos dados estatísticos conhecerem os critérios e a metodologia a serem utilizados para a captação e apresentação das informações. Dessa forma, o TJDFT cria uma base sólida de conhecimento sobre essa demanda e registra o modus operandi em relação à prática para as futuras gestões.

Possivelmente, assim como o TJDFT, outros Tribunais tenham criado instrumentos e adotado medidas que produzirão resultados positivos, aproveitando as oportunidades advindas da criação e funcionamento do Sistema de Estatística do Poder Judiciário. É inegável a capacidade dos Tribunais brasileiros de constantemente realizarem ações que visem ao aperfeiçoamento da prestação jurisdicional. Basta entrar em contato com as práticas de gestão inscritas no Prêmio Innovare, desde a sua primeira edição em 2004, para se ter uma idéia da multiplicidade de atividades em curso para melhorar a Justiça no Brasil. Dos três poderes, o Judiciário é, provavelmente, o que mais avançou na informatização de suas atividades. Constantemente, seus integrantes se reúnem para trocar experiências e compartilhar práticas de sucesso, seja nos encontros de Presidentes de Tribunal, seja em seminários e congressos temáticos, onde são reforçados os contatos e feitas novas parcerias.

FOCO E ESCOPO

Dentro do contexto que abordo aqui, é clara a percepção de uma sinergia muito forte entre os Tribunais Estaduais. Aproveitar esse espírito de cooperação é uma oportunidade aberta para o CNJ. O Sistema de Estatística do Poder Judiciário é um instrumento que, se bem utilizado, pode potencializar os esforços que vêm sendo constantemente realizados pelos Tribunais, para aperfeiçoar os seus serviços. As deficiências devem ser identificadas com o propósito de corrigi-las e não para macular a imagem de instituições sérias que sustentam o mais fundamental e importante fator em uma sociedade democrática: a Justiça.

A consciência de que é necessário foco, para que os recursos sejam potencializados e revertidos em benefício da sociedade, é patente. O CNJ pode e deve exercer esse papel, proporcionando pesquisa e estratégias, mais do que controle e disciplina. O escopo maior de tornar a Justiça brasileira mais eficiente, eficaz, acessível e transparente, será atingido na medida em que os demais escopos dos Tribunais e aquele do CNJ sejam alinhados, respeitando as particularidades de cada um. Esse é um trabalho conjunto. Fora desta perspectiva, corremos o risco de almejarmos o mesmo resultado, porém caminhando em direções opostas.

As decisões que dizem respeito ao trabalho dos Tribunais necessitam ser tomadas em parceria. Caso contrário, abdicando de uma visão sistêmica, corre-se o risco de, ao se tentar sanar uma parte do corpo que não vai bem, prejudicar todo o restante do conjunto.

Utilizar indicadores estatísticos para conhecer uma realidade e então transformá-la, funciona, se é adotado um critério justo de análise e aplicação. A lei é válida quando salva, não quando condena. Essa é uma premissa fundamental que deve nortear os atos do CNJ para, em conjunto, alcançarmos o escopo que tanto queremos.

(*) Marcelo Girade Corrêa

Especialista em Administração Judiciária pela FGV/EBAP. Assessor de Programas e Projetos da Presidência do TJDFT. marcelo@tjdf.gov.br

Fonte: TJDFT

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