O valor da democracia representativa no Brasil

Publicado por: redação
23/07/2010 11:11 PM
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O valor da democracia representativa no Brasil

Leia a seguir a íntegra da participação do vice-presidente da ANER e vice-presidente de Relações Institucionais do Grupo Abril, Sidnei Basile, na V Conferência Legislativa sobre Liberdade de Imprensa.
O valor da democracia representativa no Brasil

“Se formos generosos com o país e suas instituições, generosos com nossos filhos, saberemos construir o diálogo tão necessário a que a democracia representativa, que hoje floresce plenamente, se enraíze ainda mais.”, afirmou Basile

Esse valor é simplesmente imenso. Baseia-se na idéia de que o povo participa do Governo através de seus representantes. Foi, ao longo da História, um perseverante processo de tentativa e erro, conseqüência de guerras civis, como a francesa e a norte-americana, que resultaram em formas originais de representação popular. Foi, ao mesmo tempo, a maneira encontrada pelas sociedades ocidentais de romper com os regimes aristocráticos, autoritários ou simplesmente despóticos.

De fato, é contemporânea do crescimento das metrópoles mercantis, nas quais os comerciantes tinham assento no Parlamento mas, não podendo estar presentes a todas as sessões, como na Inglaterra no período da Revolução Mercantil,apontavam outros cidadãos para representarem seus interesses frente à Coroa e ao Parlamento.

Com o crescimento das populações, o avanço das cidades, o desenvolvimento das colônias, e as pressões da cidadania (como a Revolução Gloriosa, na Inglaterra), os mecanismos de representação tiveram de ser aperfeiçoados. E, finalmente, com guerras civis como a americana e a francesa, inteiramente repensados e redefinidos.

No Brasil a idéia da democracia representativa está ligada à própria idéia de  liberdade. Com mais de 500 anos de História, fomos, durante 300, colônia do Império português. Depois, um império brasileiro por  quase outros 70, onde houve Parlamento, mas também voto censitário e escravidão. Depois, uma democracia freqüentemente sobressaltada por estados de sítio, revoluções, golpes e tentativas de golpes de Estado e longos períodos de exceção, como o Estado Novo de Vargas ou o regime militar que vigorou entre 1964 e 1985.

Assim, pode-se com tranquilidade dizer que, desses cinco séculos, talvez não tenhamos vivido mais do que 10% de nossa vida como Nação sob a égide da liberdade. O primeiro grande ciclo libertário foi o regime instalado em 1946, e durou até 1964. O segundo período vem de 1985 até hoje. A maior parte do tempo não nos damos conta, mas somos as testemunhas privilegiadas do maior período de vigência do regime da liberdade de que nosso país tem notícia.

É por isso que, mesmo em quadras de cerceamento da liberdade, o valor reconhecido da democracia representativa era tão grande que, nestes, se procurou manter as instituições da representação popular, ainda que formalmente. Sob a ditadura militar havia o AI 5, mas as instituições da democracia representativa, ainda que parciais e mutiladas, davam o ar de sua graça.

Nem sempre, portanto, quando temos democracia representativa temos liberdade. Mas sempre que temos liberdade também temos democracia representativa. É essa a nossa História.

Nossa democracia é perfeita? Certamente não, e a continuada discussão, por exemplo, a respeito da necessidade e até mesmo urgência de uma reforma política é uma evidência clara de quanto precisamos caminhar, ainda, no sentido de dar à participação popular uma adequada representação no corpo político da Nação.

A democracia representativa opõe-se à democracia direta, pela qual os cidadãos, em constantes referendos, acabam tomando as decisões mais relevantes para a Nação.

O problema desta forma de Governo é que é intrinsecamente parcial, pois você simplesmente não pode envolver todos os cidadãos nos referendos. Isso porque, acima de tudo, é pouco prático, pois são tantos os assuntos que estariam sendo objeto de referendos que seria impossível submetê-los, todos, a esse processo de decisão política.

É por isso que nos regimes representativos as hipóteses de convocação de referendos são claramente especificadas e, certamente, limitadas a questões de grande relevância.

Restaria, assim, na democracia direta, o recurso a que se convocassem os cidadãos de acordo com alguma agenda pré-determinada. A questão, contudo, é a seguinte: como se fixa essa agenda? Problema clássico da teoria política, o tema do agenda setting é mal resolvido na democracia direta. A experiência histórica mostra que, infelizmente, em nações de maior porte demográfico, ela só se faz por alguma espécie de autoritarismo popular, seja de direita (como na Alemanha de Hitler ou Italia de Mussolini) como de esquerda (nos exemplos contemporâneos de Hugo Chávez, na Venezuela e Evo Morales, na Bolivia).

Em geral a forma de expressão dessa democracia direta é o exercício de alguma espécie de ditadura da maioria sobre a minoria, onde acaba se frustrando a própria idéia do ideal democrático, de convivência dos opostos, pluralidade de idéias e, no limite, rotatividade no poder. Tudo isso trocado, invariavelmente, por alguma forma de autoritarismo popular combinado com Estado policial.

Parece-me que, no Brasil, o que mais se aproxima de experimentos de democracia direta são as conferências nacionais temáticas. Elas têm um lado altamente positivo, que é o da consulta a amplos setores da sociedade a respeito de uma gama enorme de temas, que vão da saúde à previdência, à educação dos indígenas, da segurança e comunicação e à cultura. E tem também os seus problemas.

Pelo que pudemos ver da Conferência Nacional de Comunicação, ela teve esse papel de se viabilizar como uma forma de consulta à sociedade, e isso foi bom. Entretanto, quando se recusou a absorver em sua agenda temas como a liberdade de expressão, o direito à informação e o respeito à legalidade (todos princípios garantidos pela Constituição) tornou-se dogmática e, infelizmente, instrumento de viabilização dessa ditadura da maioria – no caso, a maioria das instituições sociais e governamentais que, na comissão organizadora, não aceitaram a inclusão em sua agenda de princípios assegurados pela Constituição Federal.

As conclusões dessas conferências admitem a soberania da democracia representativa. Subordinam-se a ela. Estabelecem que suas conclusões devem ser recebidas como recomendações tendentes à produção de projetos de lei que, depois de chancelados pelos representantes do povo terão, aí sim, sua imperativa legalidade.

Mas é necessário que não se esqueça sob quais condições e pressões o temário terá sido estabelecido, de que maneira foram tratadas as minorias para que se tenha o necessário discernimento a respeito já não da legalidade pura e simples, mas também da legitimidade para propor o que tais conferências chamaram a si.

De outra parte, sendo jornalista, devo me perguntar e perguntar a meus colegas de profissão: como os jornalistas estão vendo a democracia representativa? Acho que esta é a reflexão última deste encontro, a mais fundamental.

Será que a estamos vendo como um valor? Será que a vemos como a resultante e desaguadouro necessário e imperativo de tantas lutas a favor da liberdade em nossa História? Será que nos damos conta de quão precioso é o período em que vivemos, quão privilegiadas e, ao mesmo tempo, angustiantes são as circunstâncias sob as quais a nossa geração cuida de enraizar nossa tenra e, sob muitos aspectos, frágil democracia?

Certamente é um paradoxo da convivência em liberdade que seu exercício vai minando a própria liberdade enquanto, contraditoriamente, constrói suas instituições.

O exemplo clássico  disso foi a radicalização da Revolução Francesa que, empenhada em mitigar e, por fim, extirpar os abusos da monarquia, criou grandes instituições da representação popular mas também frequentemente sufocou a liberdade, mandando para o cadafalso líder após líder desse extraordinário movimento, em um processo que, à época, se comparava ao de Saturno, o deus mítico que comia seus próprios filhos.

O instrumento simultâneo do que acreditavam ser um aprofundamento da Revolução e dos costumes políticos da França foi por muitos chamado de "a ditadura do otimismo", em referência à inexorável confiança que possuíam os jacobinos em que tinham, eles sim, seu encontro marcado com a verdadeira liberdade do povo francês, e que evoluiu para "a ditadura da virtude", o pavoroso jogo pelo qual, em nome da vigilância pelo que se julgava ser o bem público se  encharcou a França em uma orgia de sangue.

A Revolução Francesa, esse extraordinário laboratório de experiência social e política, foi ao limite em que sua imprensa jacobina acreditava que não havia solução para o país senão a inexorável "fuga para a frente".

Essa imprensa demonizava a política e os políticos, e estimulava, exigia mesmo, que se punisse com a guilhotina o padeiro que não tivesse mais pão aos preços tabelados para servir à população em situações perversas em que o pão sumia justamente porque o preço era tabelado e a demanda superava em muitas vezes a oferta.

Houve um ponto em que, finalmente, se mandava para o cadafalso quem simplesmente não soubesse mais dizer em que dia estava, no complicado calendário que a Revolução substituiu ao gregoriano, com 10 meses ao invés de doze, três semanas ao invés de quatro e, em consequência, com nomes todos diferentes.

A imprensa jacobina teve um papel fundamental nesse processo de exasperação pública. Dizia Robespierre, surfando nessa onda: "o sangue precisa rolar para que a Revolução não venha a parar." E as denúncias dessa imprensa forneciam a matéria-prima, em vidas humanas, para a perenização desse tenebroso processo.

Denúncias anônimas, delações, denúncias sem provas, sem o contraditório eram aceitas e, julgadas na noite da prisão do infeliz, forçosamente tinham de resultar ou em sua libertação no dia seguinte, ou na guilhotina. Com enorme frequência era o segundo caminho que aguardava os infelizes aprisionados neste macabro processo.

Qual foi o final disso tudo? A reação termidoriana, a volta do Império e a emergência de Napoleão, que se impôs ao conter erupções do fervor revolucionário atirando com canhões contra a massa enfurecida.

Menciono o episódio porque me parece, como em tantas outras situações da Revolução Francesa, exemplar a respeito de como a não disposição para a tolerância e a convivência gerou desastres ainda maiores do que os que se propunha remediar.

E menciono isso para dizer que, no regime da democracia representativa em que estamos no Brasil, a imprensa tem uma oportunidade ímpar de se configurar como uma instituição relevante para o aperfeiçoamento de nossos costumes e instituições políticas. Refiro-me à necessidade - mais que isso, a urgência - da autorregulação.

O STF declarou que a Lei de Imprensa que nos tolhia desde 1967 não existe mais. Isto é uma verdade empírica, não uma tese passível de interpretações esdrúxulas. Não há como fazer a revisão do regime de plena liberdade de imprensa que vigora entre nós.

Nas belas e precisas palavras do relator, ministro Carlos Ayres Britto, o que o STF decidiu é que "não é o Estado que fiscaliza a imprensa, é a imprensa que fiscaliza o Estado." Sendo assim, pondera ele, "qual será o tamanho da liberdade de imprensa?" Para responder, ele próprio: "é infinito." E aí, de novo, pondera: como se modula o exercício desse grande poder? Para responder: "é pela autorregulação."
Nesse sentido, concluiu ele, o julgamento da Lei de Imprensa pelo Supremo Tribunal Federal equivaleu a um grande convite à autorregulação de nosso setor.

Não há outro jeito. Temos um encontro marcado com a autorregulação, ainda que não tenhamos aceito plenamente esse convite. Tão mais tortuoso e torturado será o nosso caminho quanto por mais tempo adiarmos essa convergência da imprensa com seu destino.

E por que isso? Simplesmente porque em uma democracia representativa, cujo Congresso fez uma Constituição, cujo supremo tribunal decidiu que não cabe uma lei de imprensa, é para esta cidadania que nos incumbe a árdua tarefa de satisfazer um dos mais preciosos direitos dos cidadãos: o direito de saber.

E, pergunto: como satisfazer esse direito sem códigos de autorregulação que assegurem o direito de defesa de quem esteja sendo acusado? De que se ouçam as partes? De que se evitem ao máximo as acusações off the records? De que não se confunda o leitor misturando, em um mesmo texto, opinião com notícia? De que não se obtenha notícias com o jornalista se fazendo passar por outra pessoa? De que não se vaze o conteúdo de fitas de áudio e vídeo sem antes explicar ao público os muitos cuidados que foram tomados para tentar obter as informações de muitas outras maneiras.

Em um regime decente de autorregulação o jornalista finalmente publica o conteúdo da fita gravada somente depois de convicto da veracidade de sua apuração profissional, e como seu recurso constitucional para satisfazer a esse direito de saber o que se passa, que todo cidadão tem e o jornalista é fiel depositário.

E mais: como articular tais códigos sem as peias autoritárias de algum organismo oficial e burocrático, para que, na vida pujante e enérgica das Redações se fixem os rituais de conduta pelos quais se pautarão os jornalistas? Como, onde tais códigos existam, fazer com que se tornem o guia cotidiano da ação profissional? Como estabelecer a governança sobre isso, de modo que Conselhos Editoriais experientes sirvam de referência para a aplicação dos princípios desses códigos?

E, finalmente, como transformar tantos rituais em garantias, para o leitor e o consumidor de tantos serviços editoriais, de que a empresa tem governança corporativa que a legitima perante seus públicos e a Nação, perante seus acionistas e a comunidade a que pertence e, de diversas maneiras, também representa?

Termino ponderando que, em muitos países onde a experiência da autorregulação mais avançou, a existência de tais códigos e sua efetiva aplicação a casos concretos acabam se constituindo em presunção de boa fé no julgamento de crimes contra a honra suposta ou realmente praticados por jornalistas ou em casos de dano moral.

É muito simples criar um clima, uma cultura favorável a isso também por aqui: basta que os juízes comecem a perguntar, na instrução dos processos, se na apuração jornalística disputada judicialmente foi seguida alguma espécie de governança editorial formal. Se foi, nesses países, presume-se a boa fé e se excetua o dolo. Se não foi, morre a presunção de boa fé.

A adoção de tais preceitos por nossos juízes - mais de 10 mil em todo o Brasil - seria uma gigantesca contribuição adicional de nosso Judiciário à causa do enraizamento da democracia pelo amadurecimento das instituições, a começar da nossa, a imprensa brasileira.

Adicionalmente amadureceria também o próprio Judiciário, cujos julgamentos não deixam de ter, às vezes, sobretudo nas instâncias inferiores, um caráter de loteria que, sem providências simples como as que menciono, certamente se agravará sem uma Lei de Imprensa truculenta e previsível.

O que não podemos é impedir que a agenda da consolidação da democracia representativa, filha dileta da liberdade, seja constantemente interrompida pela saudade autoritária de uma nova Lei de Imprensa, ou o controle burro de um Conselho Federal de Jornalismo ou qualquer outra flor do lodo liberticida que, infelizmente, ainda viceja entre nós.

Nada mais são, tais flores, do que a convicção expressa pelos autoritários de direita e de esquerda, de ontem e de hoje, de que ainda não acreditam seriamente que a liberdade de imprensa é para valer, que o Judiciário é para valer, que o Congresso é para valer e que, finalmente, a nossa jovem mas resistente democracia também é para valer.

Entretanto, se formos generosos com o país e suas instituições, generosos com nossos filhos, saberemos construir o diálogo tão necessário a que a democracia representativa, que hoje floresce plenamente, se enraíze ainda mais. E que possamos perseverar na nobre tarefa da construção de um grande país e uma grande Nação.

Brasília 04-05-2010

Fonte: ANJ

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