Relações de consumo em zona grise

Publicado por: redação
17/03/2013 10:58 PM
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Os enquadramentos jurídicos fronteiriços do direito do consumidor
*Brunno Pandori Giancoli

Professor de Direito do Consumidor, direito civil do Complexo Jurídico Damásio de Jesus.


A qualificação de uma relação jurídica como "de consumo" mostra-se difícil e controvertida em diversas situações concretas. Hodiernamente surgem novos modelos e atividades no cenário econômico, cujo enquadramento sujeito às regras "civis" ou "de consumo" não permitem um enquadramento perfeito em nenhuma das hipóteses, pois apresentam traços jurídicos tanto do regime geral do direito civil, como do regime específico do direito do consumidor.

São, portanto, situações de enquadramento fronteiriço, ou seja, que se situam na chamada "zona grise", isto é, uma zona cinzenta habitada por sujeitos que tanto poderão ser enquadrados como consumidores e fornecedores, como também meros participantes de um negócio jurídico regido pelas regras civis gerais. A ideia de um sujeito de direito situado em zona grise não é totalmente estranha à dogmática brasileira. No direito do trabalho o tema é bastante desenvolvido, inclusive com a presença de diversos situações já reconhecidas tanto pela doutrina como pela jurisprudência. Como exemplo é possível citar a discussão em torno do enquadramento jurídico do representante comercial. Nesta espécie de relação de trabalho, segundo Délio Maranhão e Luiz Inácio B. Carvalho "há uma larga zona cinzenta que torna, muitas vezes, difícil, no caso concreto, dar ou não, por configurada a existência do contrato de trabalho, distinguindo-o do mandato com representação, que a doutrina classifica, também, como contrato subordinante, porque uma das partes, como no contrato de trabalho, está, por igual, sujeita às ordens e instruções da outra no que respeita ao cumprimento da obrigação assumida" (Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 71-72).

A mesma dificuldade enfrentada no direito do trabalho para o enquadramento jurídico de situações fronteiriças é vivenciada, de forma similar, no direito do consumidor. No âmbito das relações de consumo o fenômeno das redes sociais, cujos maiores exemplos atuais são o facebook; o twitter; e o instagram, representa uma típica situação de zona grise. Não há dúvida que os sociedades empresárias titulares das redes sociais desenvolvem uma atividade econômica permitindo, portanto, o seu enquadramento como fornecedores de acordo com o art. 3o. do CDC. Porém, afirmar que a atividade desenvolvida é propriamente um serviço ( § 2o. do art. 3o do CDC); e o usuário um consumidor standard (art. 2o. do CDC) ou até mesmo equiparado (art. 29 do CDC) é uma intepretação que, mesmo sob uma ótica maximalista, é temerosa.

Por tratar-se de um microssistema diferenciado, o direito do consumidor não tem o condão de substituir as regras civis gerais. Daí porque tanto a doutrina como a jurisprudência titubeiam ao explicar qual o regime aplicável em situações acinzentas, como é o caso da relação do facebook; do twitter; e do instagram com os seus usuários.

Tecnicamente, afirmar que as redes sociais prestam um serviço tutela pelo CDC é algo duvidoso. Sua atividade precípua de armazenar dados e informações inseridas e compartilhadas pelos próprios usuários é algo sui generis e, portanto, ainda exige dos operadores do direito uma reflexão mais detalhada. Apenas para ilustra a dificuldade atual, é de conhecimento notório que as redes sociais não exigem, via de regra, qualquer contraprestação pelo armazenamento de dados pessoais do usuário, pois apresentam uma estrutura remuneratória realizada por mecanismos publicitários sofisticados. Contudo, parte da doutrina enxerga a possibilidade de caracterização de uma remuneração indireta nestas hipóteses. Tese esposada, inclusive, pelo STJ no REsp 1308830/RS da relatoria da Min. Nancy Andrighi julgado em 08/05/2012. No referido precedente a ministra relatora afirma que "o fato de o serviço prestado pelo provedor de serviço de internet ser gratuito não desvirtua a relação de consumo, pois o termo mediante remuneração, contido no art. 3º, § 2º, do CDC, deve ser interpretado de forma ampla, de modo a incluir o ganho indireto do fornecedor". O fato do STJ no REsp 1308830/RS ter afirmado que o termo remuneração deve ser interpretado "de forma ampla", é suficiente para comprovar a tese da existência de relações de consumo fronteiriças (ou em zona grise), diante da atipicidade da natureza jurídica das redes sociais e o seu pleno enquadramento no CDC.

Além disso, tratar o usuário de uma rede social como um típico consumidor (ou até mesmo equiparado), ou seja, um sujeito que adquire ou utiliza um bem de consumo como destinatário final é uma lógica desarrazoada na interpretação da disciplina consumerista. O usuário de uma rede social simplesmente compartilha suas próprias informações por razões variadas: das mais fúteis às mais estratégicas. Esses comportamentos "socializantes" de informações pessoais vão muito além de uma simples relação de consumo. São, verdadeiramente, uma tendência toda sociedade contemporânea, a qual passa a ter, de forma cada vez mais enfática, uma dimensão virtualizada de relacionamentos. Diante dessa situação surge uma indagação: Existe uma destinação final deste "suposto" serviço conhecido como rede social? Ao que tudo indica a resposta desta pergunta é negativa.

Porém, o ponto central que desperta a sensação de estarmos diante de uma relação de consumo ao utilizarmos uma rede social é, sem dúvida nenhuma, a vulnerabilidade do usuário. É justamente este traço, o qual representa a pedra angular de caracterização da tutela do consumidor, que garante uma atração normativa do CDC para solucionar eventuais litígios entre usuários e os empresários titulares das redes sociais. Mas este fenômeno atrativo não autoriza a plena aplicação das normas consumeristas. Isso porque existem diversos litígios envolvendo ilícitos praticados não pelo titular empresarial da rede social, mas sim por usuários contra outros usuários; ou usuários contra a sociedade como um todo. Tomemos como exemplo os casos de cyberbullying, stalking, pedofilia virtual, etc. Nestas hipóteses seria coerente aplicar sumariamente as normas e princípios do CDC? Aliás, seria adequado responsabilizar as redes sociais por condutas ilícitas imputáveis exclusivamente aos seus usuários? Mais uma vez a resposta para estas assertivas é negativa.

Por estas e outras razões, é forçoso concluir, que existem relações atraídas pelas normas do direito do consumidor, tendo em vista a existência de um sujeito vulnerável exposto a uma atividade econômica; não são relações de consumo típicas, pois situam em uma zona obscura. Nestes casos a aplicação do CDC deve ocorrer de forma temperada, com um diálogo normativo inverso com as normas civis gerais. O diálogo das fontes, expressão cunhada pelo doutrinador Erik Jayme, cujo modelo teórico por ele desenvolvido foi absorvido pela dogmática consumerista brasileira; permite, de acordo com a lição de Cláudia Lima Marques, uma aplicação simultânea e coerente de muitas leis ou fontes de direito privado, fruto do pluralismo típico da pós-modernidade.

Com a teoria do diálogo das fontes é possível compreender que nas hipóteses de relações de enquadramento fronteiriço (zona grise), a exemplo do que ocorre com as redes sociais, a estrutura normativa típica das relações de consumo sucumbe, exigindo, pois, uma reestruturação através da aplicação simultânea de regras e modelos e princípios de contornos mais afetos à dogmática civil. Mitiga-se, pois, a força da microssistemática do CDC, para que o diálogo com o Código Civil garanta a aplicação de uma solução coerente e eficiente para as questões tratavas por usuários em redes sociais.

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