Liberdade de família

Publicado por: redação
18/08/2011 05:00 AM
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Juiz Atalá Correia

A família e o Direito de Família encontram-se em franca mutação. Sempre houve diversos tipos de família. As convencionais são constituídas de pai e mãe, sem filhos, outras com filhos, ou sem um dos pais. As famílias de exceção, por assim dizer, violavam tabus arraigados em nossa cultura. As artes ilustram famílias como as de Édipo e Jocasta, de Dona Flor e seus Dois Maridos, de Diadorim e Riobaldo. Ocorre que os preceitos morais se afrouxam e os exemplos literários passam a habitar entre nós de forma cotidiana, não mais como exceção. Essa mudança vem seguida de pressões sociais, de conflitos, que fazem o direito transformar-se.

O maior exemplo dessa mudança está relacionado à homoafetividade. Primeiro, indivíduos isolados declaravam publicamente sua condição sexual. Depois, juntaram-se em manifestações públicas e o fenômeno tornou-se corriqueiro. Vieram as ações judiciais, clamando por justiça, por divisão de patrimônio comum, por adoção de filhos, por pensionamento e, mais que isso, por reconhecimento sociojurídico. As decisões judiciais, de esporádicas passaram a ser comuns.

Quando a discussão tornava-se acalorada, o Supremo Tribunal Federal pacificou o tema ao equiparar as uniões homoafetivas, para todos os fins de direito, às uniões estáveis havidas entre homem e mulher. Para reconhecer a família homoafetiva, o Supremo Tribunal Federal considerou que deve prevalecer a igualdade, o combate ao preconceito, o pluralismo, a dignidade humana e a vida privada. A decisão representou uma mudança de paradigmas sem precedentes.

Tradicionalmente, a família, em termos jurídicos, exigia prévio casamento. Apenas com a Constituição Federal de 1988 passou-se a admitir a família sem casamento. Agora, por força de uma decisão judicial, reconheceu-se que uma família de fato, a homoafetiva, deveria ser equiparada às demais. Assim, o direito de família, que antes só atribuía efeitos jurídicos a famílias constituídas segundo as formalidades impostas por lei, depara-se com a possibilidade de, judicialmente, atribuir esses mesmos efeitos a uma família de fato, em nome da dignidade humana.

Os juristas têm-se perguntado se esse precedente do STF não poderia ser utilizado para, também, inserir outras famílias de fato, até agora excepcionais, no regime jurídico atribuído às famílias convencionais. Há certas religiões, por exemplo, que admitem o casamento de um homem com mais de uma mulher. Esses grupos devem ser deixados de lado, sem amparo jurídico, ou o direito há de tutelá-los sob o manto do direito de família? Algumas nações admitem que árbitros solucionem os casos de família segundo preceitos religiosos, como o direito canônico ou a Sharia islâmica por exemplo. As decisões arbitrais são posteriormente executadas nas cortes comuns, mas há grande controvérsia sobre a eficácia de decisões que violem aquilo que consideramos direitos humanos fundamentais.

Os mais apressados dirão que, no Brasil, há a proibição da bigamia. Embora a afirmação seja correta, deve-se tê-la sob a correta perspectiva. É crime casar-se na constância de casamento anterior. Mas nada impede que uma pessoa solteira passe a conviver com outras duas, ao mesmo tempo, sem jamais se solteira passe a conviver com outras duas, ao mesmo tempo, sem jamais se casar. Indo além, é necessário mencionar situações ainda mais drásticas aos olhos da nossa cultura.

Há algum tempo foi divulgado que dois irmãos alemães, após terem crescido em lares diversos, optaram por se unir, e da relação advieram quatro filhos. Nossa resistência cultural a esse tipo de união é bem exemplificada por Claude-Levi Strauss, que considera a proibição do incesto regra universal, presente em todas as sociedades. A vedação ao incesto tem suas raízes morais, mas também biológicas, pois há alta probabilidade de má formação dos filhos. No caso do casal alemão, três crianças vieram ao mundo com necessidades especiais. O Tribunal Constitucional daquele país manteve a proibição do incesto.

Tal como no caso da família homoafetiva, os filhos podem ser adotados ou advindos de fertilização artificial. Assim, não poderiam ser utilizados, em favor dessa família homoafetiva, os mesmos argumentos de laciedade, pluralismo, dignidade e necessidade de tutela do afeto? Não se quer, com esses argumentos, defender como opção pessoal ou moral cada uma dessas situações, mas testar o limite das ideias de pluralismo, de afetividade como fator determinante nas relações familiares e do próprio conceito de dignidade humana. Se há liberdade de família, devemos conhecer os seus limites, para poder repensar o direito de família.

Autor: Atalá Correia é Professor do Instituto Brasiliense de Direito Público, mestre em direito civil e Juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios - TJDFT

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