Por Prof. Alexandre Bahia
Está em discussão no STF o Recurso Extraordinário n. 635.659 no qual a Defensoria Pública de SP questiona a constitucionalidade da lei que tipifica como crime o porte de substâncias entorpecentes (ilícitas) para consumo próprio.[1] A matéria foi considerada como tendo repercussão geral, pelo que, após julgada, servirá de precedente para casos análogos.
Os fundamentos para o questionamento da constitucionalidade são os direitos fundamentais à intimidade e à vida privada, previstos no inciso X do art. 5º da Constituição.[2] De acordo com notícia publicada pelo site do STF, para o recorrente:
o dispositivo contraria o princípio da intimidade e vida privada, pois a conduta de portar drogas para uso próprio não implica lesividade, princípio básico do direito penal, uma vez que não causa lesão a bens jurídicos alheios.
A Defensoria Pública argumenta que “o porte de drogas para uso próprio não afronta a chamada ‘saúde pública’ (objeto jurídico do delito de tráfico de drogas), mas apenas, e quando muito, a saúde pessoal do próprio usuário”.[3]
Não é nosso objetivo aqui discutir a questão pelo viés do Direito Penal e enveredarmos pelo que é o “bem juridicamente protegido” na atual lei sobre drogas no Brasil. Deixemos para os penalistas tal trabalho. Contudo, há 2 pontos que nos chamam a atenção no presente caso.
O primeiro é que a atual lei anti-drogas, que é de 2006, evoluiu muito frente à anterior, a lei 6368/1976, que tratava o uso como um crime sujeito a prisão.[4] Ou seja, entre a total “descriminalização” e a “prisão” do usuário preferiu-se, em 2006, pelo caminho do meio. De qualquer forma é um avanço porque não se pune mais o usuário com “cadeia”, uma vez que o legislador entende que este é uma vítima do seu próprio vício. Já aí se percebe que houve uma mudança valorativa do comportamento.
Contudo, paradoxalmente, a mudança era tão significativa que já há pesquisas mostrando uma “subnotificação” policial (e subcondenação judicial) quanto ao uso em comparação ao aumento da notificação de “tráfico” (este sim punido com prisão). Pessoas flagradas com pequenas quantidades de droga são logo “enquadradas” como traficantes[5], já que como usuárias elas não seriam presas. Isso contraria a iniciativa da lei, que era diminuir o número de encarcerados e, principalmente, dar um tratamento público diferenciado – e mais eficiente – para os usuários de drogas.
O segundo é a discussão da punição criminal do porte de drogas esbarrar na proteção da intimidade e da vida privada, direitos garantidos constitucionalmente. Mais uma vez, sem querer entrar no mérito sobre qual o “bem protegido” na lei anti-drogras, se a saúde pública ou individual, é interessante pensarmos na discussão sobre o que esses direitos significam. Um dos supostos fundamentais do Direito é a “autonomia”, isto é, do ponto de vista público, a autonomia é o direito de participação na formação da vontade pública – em democracias representativas isso se dá com o voto em representantes que devem aprovar/não leis no interesse daqueles que representam. Do ponto de vista privado se traduz na garantia de liberdade e igualdade.
Ora, leis são, necessariamente, limitações à liberdade “total”. Leis limitam a possibilidade de um indivíduo fazer algo que ofenda/prejudique a outrem,[6] mas também que possam ofender a eles mesmos – como, por exemplo, a lei que nos obriga a usar cinto de segurança (isso porque, apesar da saúde individual e a vida serem direitos “individuais”, ao mesmo tempo são em tese indisponíveis pelo indivíduo, logo, cabe ao Estado sua proteção). A questão, logo, não é se a lei anti-drogas ofende “em tese” a intimidade e a vida privada dos indivíduos, mas se tal ofensa é aceitável de um ponto de vista democrático-constitucional.
Pagar um tributo ofende, “em tese”, o meu direito de propriedade, contudo se justifica pelo benefício que traz para a coletividade, sendo aceito como uma limitação legítima pelos contribuintes – desde que resulte, realmente, em benefícios coletivos e não seja privatizado por alguns, mas essa é outra questão.
Como saber, então, se uma limitação legal à liberdade individual é legítima? Do ponto de vista do procedimento legislativo, representantes eleitos podem, dando seguimento à vontade dos que os representam, estabelecer restrições a direitos visando a obtenção de resultados que beneficiem “a sociedade” como um todo (ex. tributos) ou suas partes (ex. cinto de segurança). No campo penal especificamente não é nada novo se falar em sua natural “seletividade”: pune-se o consumo de certas substâncias entorpecentes como a maconha, que causa dependência e danos à saúde, mas não se proíbe/pune da mesma forma outras, como o tabaco e do álcool. Ora, se “onde há a mesma razão de fato deve haver a mesma razão de direito”, seguindo-se o velho brocardo latino (ubi eadem ratio ibi eadem dispositio), apenas a discricionariedade legislativa (que, sabemos, é levada por certos lobbies muito poderosos) pode fazer discriminações como essa e utilizar “dois pesos e duas medidas”.
É claro que a vontade da maioria nem sempre é aceitável, pois pode ser que ofenda a Constituição. Uma lei que hoje aprovasse a pena de morte, mesmo que contasse com 99% de aprovação popular seria nula porque ofenderia a Constituição – aliás, nem ela pode ser alterada nesse ponto, porque é a própria Constituição que proíbe emendas que sejam “tendentes a abolir” direitos fundamentais.
Isso faz retornar o problema: se nem a democracia pode legitimar de forma absoluta, vemos que há uma tensão entre constitucionalismo e democracia que sempre irá retornar, seja no debate legislativo, seja no judicial. Nos EUA, em 1973, no polêmico caso Roe vs. Wade, a Suprema Corte entendeu que a lei que proibia o aborto era inconstitucional porque violava o direito à intimidade (e privacidade) da mulher.
Dessa forma, seja qual for a decisão do STF nesse caso, entre a proteção do indivíduo (inclusive contra ele mesmo) e a intimidade (e vida privada), o Tribunal irá dar curso à eterna tensão mencionada (constitucionalismo x democracia); de qualquer forma, deverá mostrar, no caso, qual daquelas duas pretensões é a adequada para resolver o caso concreto. Não se trata de “julgar o valor das opções do legislador”, se são “proporcionalmente razoáveis ou não” – como postula o princípio da proporcionalidade/razoabilidade –, mas sim, como dissemos, se considerando o aparente conflito entre aqueles direitos, a reconstrução do caso e do ordenamento jurídico proporciona, perceba-se qual dos princípios é o “adequado”.