A atual percepção da prisão preventiva

Publicado por: redação
14/05/2010 09:38 AM
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A atual percepção da prisão preventiva - Juíza Rejane Jungbluth
O direito à liberdade é tutelado de forma expressa pela Constituição Federal, todavia o art. 5º, inciso LXI, prevê as possibilidades em que é permitida a privação dessa liberdade. O minudenciamento das hipóteses em que é lícita a prisão caberá à lei ordinária, que também estabelecerá as formalidades necessárias para tanto.

Dentre as prisões cautelares, destaca-se a prisão preventiva, que se justifica pela necessidade do acautelamento do indivíduo que cometeu um fato delituoso, desde que presentes os pressupostos do fumus boni iuris (fumus comissi delicti)e do periculum in mora (periculum libertartis).

Hodiernamente, se observa um desvirtuamento da percepção da prisão preventiva, não obstante sua aparente sofisticação jurídica, vez que exige requisitos imprescindíveis para sua incidência, dentre os quais a existência de perigo à aplicação da lei penal, perigo à ordem pública ou necessidade para a instrução criminal, além de um juízo positivo acerca de sua necessidade e legalidade.

Da cautelar se espera uma pronta resposta estatal, ou seja, há nítido sentimento de justiça realizado quando alguém comete um delito e, não obstante a inexistência de flagrante, é encarcerado, sob a alegação, na grande maioria das vezes, do clamor público causado pelo crime.

O contrário, ou seja, a liberdade do acusado para responder ao processo solto, quando inexistentes as condições para o seu acautelamento, enseja para a sociedade nítido sentimento de impunidade.

Não se pode atribuir à imprensa a responsabilidade exclusiva da deturpação promovida, mas com certeza é ela a grande responsável pelo sentimento gerado entre populares, principalmente os leigos em direito, pois desencadeia um processo reativo e provoca uma indignação sistêmica na sociedade.

As prisões ocorridas em crimes que tenham causado repercussão nacional ou que tenham como indiciados pessoas de classes sociais mais favorecidas vêm acompanhadas de grandes espetáculos proporcionados pelo jornalismo-juiz, que expõe, julga e condena em matérias de no máximo três minutos de duração ou em algumas linhas escritas, em muitos casos destruindo biografias que levaram décadas para serem construídas.

Diferentemente de outros países, as matérias jornalísticas no Brasil dão ênfase às investigações realizadas pela polícia e Ministério Público, relatando os fatos quando esses ainda estão vivos na memória da população em razão de comoção social fomentada. O que ocorre durante o processo judicial e a sua conclusão pouquíssimas vezes, e por que não dizer, em raríssimas ocasiões, são divulgados ou, se divulgados, não merecem o destaque dado ao início da investigação.

A imprensa que acompanha os fatos delituosos, por um lado, deixou de ser investigativa para se tornar relatora dos acontecimentos com conclusões pouquíssimos vezes acompanhada de tecnicismo jurídico. Ao contrário, é carente de esclarecimentos judiciais, lançando o fato e exigindo do judiciário uma resposta instantânea, a fim de que a credibilidade da justiça não seja abalada.

Por outro lado, não há como imputar essa responsabilidade tão-somente à imprensa, pois é cediço que o Judiciário pouco espaço oferece ao esclarecimento da população. Exemplo do aqui exposto é o recente Código de Ética da Magistratura, editado pelo Conselho Nacional de Justiça, que aduz no seu art. 13 que "O magistrado deve evitar comportamentos que impliquem a busca injustificada e desmesurada por reconhecimento social, mormente a autopromoção em publicação de qualquer natureza".[1]

Desse modo, a publicação de uma sentença ou decisão judicial que esteja fora dos âmbitos do Diário da Justiça pode ser considerada ato atentatório ao Código emanado pelo Conselho, resultando em punição ao seu prolator.

A percepção social dada às prisões preventivas resulta num pré-julgamento, ou seja, agem como se juízo de mérito fossem, se revestindo de uma falsa resposta imediata aos crimes cometidos, assim como conduzem a uma ilusória sensação de segurança.

Com efeito, a prisão cautelar na fase inquisitorial ou inicial do processo resulta num sentimento popular de produção de justiça, pois o investigado já restou punido, ao passo, que a concessão da liberdade ou a mantença do imputado solto, "(?) implica não apenas a idéia de impunidade, mas, além, disso, a idéia de que o crime não encontrou qualquer resposta efetiva por parte do Estado".[2]

Essa repercussão desvirtuada da prisão cautelar a confunde com a prisão pena, causando embaraço não apenas na sociedade em geral, mas no próprio operador do direito, in casu, o Magistrado, que se vê muitas vezes provocado, compelido ou mesmo cobrado para fazer valer, por meio das prisões processuais, as razões ensjadoras da própria existência do direito penal.

Não há que se olvidar que esse tipo de comportamento gerado pela sociedade, que repercute diretamente no judiciário, faz, nas palavras de Peter L. Berger, com que "(?) as instituições proporcionem métodos pelos quais a conduta humana seja padronizada, obrigada a seguir por caminhos considerados desejáveis pela sociedade. E o truque é executado ao se fazer com esses caminhos pareçam ao indivíduo como os únicos possíveis."[3]

Por um lado, a ausência da determinação de prisão cautelar, ou mesmo seu indeferimento na fase inicial do processo penal, traz como conseqüência imediata o sentimento de impunidade para com a sociedade, máxime nos casos de ampla divulgação midiática. Por outro lado, esta influência coativa tem o alcance de proporcionar decisões injustas, violadoras de princípios garantidores dos direitos fundamentais.

Porém, no imaginário social, os efeitos dessa inversão dos princípios são assoladores, uma vez que a formação da culpa é percepção mais perene do que a certeza da inocência. Assim, o medo acaba por se sobrepor à legalidade, se tornando justificativa para as soluções céleres do ordenamento jurídico.

É cediço que as restrições impostas às liberdades pessoais são necessárias para o equilíbrio do convívio social, todavia não é razoável que as prisões preventivas sejam fundamentadas em condições genéricas relativas à simples menção dos requisitos elencados no art. 312 do Código de Processo Penal.

A praxe judiciária evidencia que as decisões judiciais vêm revestidas, muitas vezes, de fundamentação direcionada à necessidade de se assegurar a ordem pública de modo genérico, sem observar os fatos concretos das práticas delitivas que exigem a restrição da liberdade dos acusados. A "garantia da ordem pública" admite tamanha elasticidade interpretativa, que acaba sendo confundida com o clamor da sociedade ou mesmo com situações em que se pretende, a rigor, antecipação de pena.

Mas o que dizer sobre tais fatos concretos, se as ferramentas disponibilizadas aos Juízes são hoje repletas de subjetivismo e abstração?

Os requisitos dispostos no art. 312 do Código de Processo Penal trazem embaraço ao aplicador do direito: por um viés, temos a sociedade clamando por justiça, por outro viés, temos uma lei ineficiente, que não dispõe de um preceito normativo eficaz e por vezes dá azo à vulneração de direitos fundamentais.

Causa perplexidade ao cidadão cumpridor de seus deveres, atônito, situações em que são noticiados crimes graves, praticados por réus confessos, que seguem soltos ao longo de toda a persecução penal. Faz-se mister a imediata reforma do código de processo penal no que toca ao tema das prisões processuais, pois, como aduz Émile Drukheim, "(?) no momento em que uma ordem nova de fenômenos se torna objeto de ciência, aqueles encontram-se já representados no espírito, não só por imagens sensíveis, mas também por espécies de conceitos grosseiramente formados"[4].

Ainda, Durkheim igualmente destaca que não é possível o homem viver no meio das coisas sem fazer delas idéias segundo as quais o seu comportamento é regulado.[5] É inviável exigir que a sociedade assista com parcimônia as proliferações criminosas, as barbáries cometidas e a perpetuação de injustiças sem que providências eficazes por parte do Estado sejam asseguradas.

No que toca à norma da prisão preventiva propriamente dita, há nítida abstração, decorrente da ausência de um conceito jurídico delineado, o que gera uma multiformidade das hipóteses que admitem a incidência da custódia cautelar ao longo do tempo para o operador do direito ao fato.

A fundamentação judicial dada a uma prisão preventiva há cinco ou dez anos atrás é diversa da prolatada atualmente. Isso significa a mutação jurídica do conteúdo normativo do preceito atinente à prisão preventiva face ao tempo decorrido, de modo que a determinação do sentido e do alcance do princípio ensjador da custódia cautelar fica, portanto, condicionada ao contexto da época prolatada.

Os requisitos de outrora, principalmente em relação à concretização do requisito atinente à manutenção da ordem pública, divergem do hodierno, de modo que há uma instabilidade na prolação das decisões, uma vez que a paz e a tranqüilidade social se diferenciam no tempo e, por conseguinte, ensejam a mutação das próprias razões jurídicas necessárias e suficientes à imposição de prisão[6].

De igual forma, a prisão cautelar fica condicionada ao subjetivismo do prolator da decisão que a determina, torna-se fruto da capacidade cognoscitiva daquele que constrói argumentativamente um sentido aparentemente objetivo às circunstâncias de fato e de direito que lhe são apresentadas.

Outrossim, o crime cometido não é parâmetro para a uniformidade das decisões, servindo apenas de norte para o seu prolator. Hoje, um mesmo delito praticado por réus com condições pessoais semelhantes pode dar azo a decisões antagônicas, pois muitas vezes esses mesmos réus estão submetidos à discricionariedade judicial, informada pela exposição midiática do fato à época.

Em muitas decisões, o que se pretende tutelar com o encarceramento preventivo, fundado na garantia da ordem pública, é a paz pública; porém, comoção social e clamor público ocasiados por repulsa ao crime não costituem, por si só, fator hábil a autorizar este acautelamento.

Segundo a mens legislatoris, a garantia da ordem pública indicada no Código de Processo Penal tem como um de seus objetivos a proteção da sociedade contra atos criminosos futuros que o denunciado possa vir a cometer, caso permaneça em liberdade. Portanto, a razão de decidir da preventiva, entre outros requisitos, há de ter por critério-guia o periculum libertatis.

O critério da ordem pública, como requisito ensejador da prisão preventiva, enunciado de modo aberto, vago, permite o desvirtuamento das razões jurídicas que ensejam a imposição do gravame cautelar. É essa deturpação das razões da prisão, que a confundem com as razões ensejadoras da pena e esvaziam o sentido cautelar, ante tempu, da custódia que corrói e ameaça a legitimidade do Estado na realização da persecução penal e do próprio direito penal substancialmente considerado.

Para a prisão sob exame, faz-se imprescindível e indeclinável a demonstração, fundamentada e minudenciada, da necessidade da prisão, destaque-se, processual, lastreada em provas e elementos de informação, se o caso, que bem sinalizem a exigência de flexibilização da garantia constitucionalmente assegurada da liberdade.

Grande parte das decisões judiciais que não fazem menção aos elementos da necessidade, quando da decretação das prisões preventivas, estão sob o manto do conceito da "ordem pública", assim como o intérprete-juiz acredita que sua decisão esteja revestida da realidade social, muitas vezes com discursos generalistas beneficiando o texto legal em detrimento de princípios constitucionais, como o da presunção da inocência.

Não se pode aceitar que o julgador tenha uma única percepção, ou seja, se restrinja à imersão do que se encontra contido na lei, uma vez que o preceito legal, por si só, revela-se demasiadamente abstrato e pouco vinculado à necessária apreciação das circunstâncias de fato que reclamarão a necessidade da custódia cautelar a título de prisão preventiva.

A rigor, em lugar da fundamentação estritamente legal, que apenas reproduza ou explique, em termos jurídicos, no que consiste o enunciado legal, a decretação da prisão deve veicular motivação muito mais próxima das razões ensejadoras - no caso concreto - do necessário periculum libertatis ensejador da prisão. O esvaziamento da fundamentação judicial, por conta da já esvaziado sentido normativo do texto legal, significa franco atentado contra a segurança jurídica, corolário do Estado Democrático de Direito.

Não é permitido que haja uma perpetuação de decisões com discursos jurídicos sem qualquer reflexão quanto à validade da existência desta cautelar e amaparada apenas na mera repetição do disposto em lei. Há que se exigir uma conotação com o social, com o tempo e o ser, sem que haja violações aos direitos e as garantias dos indivíduos.

Não se revetes de validade constitucional a prisão determinada ou mantida por força de decisão que se funda apenas em mera reprodução de dispositivo de lei, sem indicar elementos concretos a justificar a medida.

Há ainda aqueles que ingenuamente acreditam que suas decisões contribuam para obstaculizar o cometimento de novos delitos semelhantes. É cediço, desde à época do liberalismo, que "

(?) um dos maiores freios aos delitos não é a crueldade das penas, mas sua inafalibilidade e, em conseqüência, a vigilância dos magistrados e a severidade de um juiz inexorável, a qual, para ser uma virtude útil, deve vir acompanhada de uma legislação suave. A certeza de um castigo, mesmo moderado, causará sempre a impressão mais intensa que o temor de outro mais severo, aliado à esperança de impunidade; pois os males, mesmo os menores, se são inevitáveis, sempre espantam o espírito humano, enquanto a esperança, dom celestial que freqüentemente tudo supre em nós, afasta a idéia de males piores, principalmente quando a impunidade, concedida amiúde pela venalidade e pela fraqueza, fortalece a esperança.[7]

A prisão sob análise foi positivada no Código de Processo Penal de 1941, durante o regime político do Estado Novo. Situado no contexto do Estado social então vigente nos principais países europeus-continentais de onde o Brasil se inspirou para a elaboração de seus códigos e diplomas legais, o diploma processual brasileiro apresenta-se de nítida inspiração totalitária e, até a década de 1979, apresentava como princípio informador de toda a sua sistematicidade a idéia de que, em regra, o acusado deveria responder à persecução penal preso; tanto é assim que, como reminescência dessa lógica, a liberdade do acusado ao longo do processo ainda recebe a anacrônica qualificação de "provisória".

Hoje, porém, se observa uma divergência entre o preceito legal estabelecido no Código de Processo Penal e a realidade social, motivo pelo qual os requisitos elencados se tornaram mera referência, a merecer imediata reforma legislativa que seja hábil a dotar de o ordenamento jurídico brasileiro de uma mínima consentaneidade com os ideais do Estado democrático de Direito.

A propósito, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 4.208/01 (CD), que altera o dispositivo relativo à prisão preventiva e minudencia um pouco mais os requisitos do acautelamento. Tal reforma, retira do texto da lei o fundamento "garantia da ordem pública", mas inclui a expressão "(?) para evitar a prática de novas infrações penais", que nada mais é do que a velha máxima da "ordem pública."

Portanto, o novo fundamento, antes mesmo de sua aprovação e entrada em vigor, já está fadado ao insucesso, pois mais uma vez não guarda coerência com a finalidade da prisão cautelar.

Permanecendo a prisão na forma em se encontra disciplinada ou tendo o seu texto alterado em razão do Projeto supra mencionado, continuará sendo exigido do operador do direito uma interpretação que tenha a Constituição como referência, a fim de que injustiças para com o acusado e com a sociedade não sejam objetos de decisões que versem sobre prisão preventiva.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. São Paulo, Martins Fontes, 1996.

BERGER, Peter L. Perspectivas Sociológicas. Petrópolis. Vozes, 1986.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Disponível no endereço eletrônico http://www.cnj.jus.br/, acessado em 02/12/2008.

CRUZ, Rogério Schietti Machado. Prisão Cautelar: Dramas, Princípios e Alternativas, Rio de Janeiro, Lúmen Juris, 2006.

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico, São Paulo, Martin Claret, 2004.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Disponível no endereço eletrônico http://www.stj.jus.br/, acessado em 30/12/2008.

[1]http://www.cnj.jus.br/

[2] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Prisão Cautelar: Dramas, Princípios e Alternativas, p. 12.

[3] BERGER, Peter L. Perspectivas Sociológicas, p. 101

[4] DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico, p. 42

[5] Ibid., loc. cit.

[6] A fuga já foi considerada pelo Superior Tribunal de Justiça como motivo ensejador da decretação da prisão preventiva. Atualmente, há o entendimento de que o mero juízo valorativo a respeito da possibilidade de fuga não constitui fundamentação suficiente para embasar o decreto de prisão preventiva, porque a possibilidade de evasão de réu solto que restar condenado sempre existe. (HC 113.898/RJ, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 28/10/2008, DJe 17/11/2008)

[7] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas, p. 92

Autor: Rejane Jungbluth, Juíza da 2A. Vara do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Brasília

Fonte: TJDFT

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