Autorização do Aborto Anencefálico

Publicado por: redação
14/05/2012 12:02 AM
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Kátia Rubinstein Tavares

“O útero é o primeiro berço do ser humano. Quando o berço se transforma num pequeno esquife, a vida se entorta ....”
(Ministra Cármen Lúcia)

A autorização da interrupção da gravidez de feto anencefálico julgada pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, que foi interposta em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde (CNTS), trouxe um debate apaixonado, mas, sobretudo, a discussão exige uma interpretação lógica ou a aplicação da analogia do Direito Penal. A questão é reconhecidamente polêmica, e remete a sensata reflexão sobre o tema. A anencenfalia é matéria da biomédica, da ética, de religiões, além de ser jurídica. O Código Penal brasileiro em vigor pune o aborto, distinguindo-se três espécies: aborto provocado pela gestante, por terceiro sem consentimento desta, ou, por terceiro com este consentimento. Entretanto, o Direito autoriza reconhecendo determinadas situações em que o aborto não é punido: se não há outro meio de salvar a vida da gestante (art. 128, I); se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido do consentimento da gestante ou do seu representante legal (at. 128, II). A primeira indicação configura a hipótese de estado de necessidade, em que para salvar determinado bem jurídico, a vida da mãe, se sacrifica a vida do feto. O outro caso previsto pelo atual Código Penal é o da gravidez proveniente de estupro. É que por razões de ordem ética ou emocional, o legislador introduziu essa autorização de interrupção da gravidez, sob a justificação de que sentimentos de revolta e aversão podem desenvolver-se na mulher violentada, em relação ao feto, fruto da violência, permitindo-se o aborto.

Importante observar que, sob o ponto de vista da ciência médica, a hipótese de anencefalia implica no seguinte diagnóstico: todos os casos são cientificamente inviáveis, pois o feto não tem condições alguma de sobrevivência fora do útero materno. Outro aspecto importante é que por inexistir o cérebro não se pode atribuir qualquer possibilidade de vida no feto. Também é difícil classificá-lo como ser da espécie humana, cuja característica essencial é a possibilidade de pensar. Portanto, impõe-se uma conclusão fundamental: no feto anencefálico não se considera a existência sequer de uma pessoa humana.

Por outro lado, sob o aspecto jurídico, o legislador em 1940, quando elaborou o Código Penal, não se defrontou com esta hipótese de gravidez. Se naquela época houvesse o diagnóstico da medicina, de que aproximadamente cem por cento dos casos de anencefalia o feto morre nos primeiros momentos após o nascimento, o legislador reconheceria a interrupção da gravidez, conforme o fez nos casos descritos acima. Ora, se é autorizado o aborto de gravidez resultante de estupro, em que pressupõe a existência de vida em potencial, com mais razão, deve ser reconhecida a interrupção de uma gravidez sem qualquer expectativa ou condições de sobrevida do nascituro.

Em última análise, deve-se aplicar o mesmo tratamento jurídico semelhante aos casos de anencefalia. Se no caso de estupro permite o legislador o aborto, ao tutelar a dignidade da mulher em detrimento da vida em potencial, levando em consideração o sentimento de revolta e aversão nutrido em relação ao ser, fruto da violência, por se tornar ele a testemunha da vergonha e desonra de que foi vítima. Da mesma forma, por analogia, é passível de concessão de antecipação terapêutica do parto, tratando-se de uma gravidez de feto sem cérebro, assim, impossível de sobrevida, preservando-se a dignidade da pessoa humana, a saúde física e mental da mulher, porquanto, não restam dúvidas, que a inviabilidade de vida humana da criança transforma-se numa odiosa tortura psicológica para quem a gere.

Kátia Rubinstein Tavares é advogada criminal   e professora da Pós-Graduação na Universidade Candido Mendes

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