Por Mauro Filho
Tema bastante controverso no campo dos direitos reais é, indubitavelmente, o usucapião (ou “a” usucapião, como preferem alguns) sobre herança e entre condôminos. O instituto do usucapião, por si, já é palco de inúmeras discussões jurídicas, talvez pela sua peculiaridade de transmitir propriedade a um “mero” possuidor e destituir do domínio o seu real proprietário, como se jamais estivesse sobre o senhorio desse. Por isso é compreendida como meio de aquisição originária da propriedade imóvel.
Inicialmente regulado pelo Direito Romano (Lei das XII Tábuas) o usucapião pode ser compreendido como um instituto singular e complicadíssimo, em que sedimentos de todas as épocas concluíram para a sua evolução[i]. O usucapião necessita de três requisitos para a sua existência no plano jurídico. Posse, tempo e previsão legal. A posse deve ser dotada de animus dominis, um requisito subjetivo do possuidor a exteriorizar a sua intenção de ser dono da coisa, além dos requisitos objetivos: ser ela pacífica, pública e contínua. Alcançando o lapso temporal exigido pela lei, variável conforme as diversas modalidades de usucapião (extraordinário, ordinário, especial e familiar), o possuidor adquire direitos sobre a propriedade, prescindível a declaração judicial por uma sentença, que uma vez registrada o transmitirá propriedade originária do bem.
Superadas as breves introduções ao instituto, surge, nesse esteio, a interessante discussão sobre a possibilidade jurídica da ocorrência do usucapião por condômino ou por um herdeiro.
Muito embora ensine o ilustre CAIO MARIO[ii] que "em nosso direito, assim antigo quanto moderno, não tem cabido o usucapião entre condôminos; uma vez que não é lícito a um excluir da posse os demais, mostra-se incompatível com esta modalidade aquisitiva a condição condominial, que por natureza exclui a posse com animus domini ", em não raros casos podemos encontrar na doutrina e jurisprudência[iii] opiniões favoráveis a essa possibilidade, mas quando há condomínio pro diviso[iv] e o condômino exclusivo exercer a posse de maneira ininterrupta e pacífica, com intenção de ser dono (animus domini) durante o prazo legal.
A questão, aparentemente, tem-se configurada possível a partir do momento em que o condômino demonstrar a inexistência de composse[v] com os outros coproprietários, onde começara a fluir o prazo prescricional aquisitivo da propriedade. De tal sorte, entende também a doutrina[vi] que aquele, seja herdeiro ou condômino, pleitear usucapião contra seus consortes, deverá provar que cessou de fato a composse[vii], estabelecendo posse exclusiva pelo tempo necessário à usucapião extraordinária, com os demais requisitos que esta requer, de maneira que só a partir de então será estabelecida a posse exclusiva pelo tempo necessário ao usucapião, com os demais requisitos que esta requer.
Com efeito, cabe salientar ao que tange os condomínios edilícios (apartamento, lojas ou escritórios), que a situação é diferente. As áreas comuns (hall de entrada e de acesso as unidade, rampas de acesso, etc.) que porventura estejam sendo utilizadas por um dos condôminos, em regra, não são passíveis de usucapia. O uso dessas áreas comuns por um ou alguns dos condôminos é considerado como ato de mera tolerância pelos demais condôminos. Atos de tolerância, em tese, não induzem posse, mas mera detenção, que é uma posse desprovida de qualificação jurídica. A tolerância é uma aceitação tácita do uso, não significa inércia por parte dos condôminos e legítimos possuidores.
Por outro lado, ao que tange o usucapião requerido por herdeiro, o tema possui outras especificidades. Primeiro ponto é que a herança, pela adoção do princípio de SAISINE ao nosso ordenamento, se transmite aos herdeiros no momento do óbito, todavia, essa herança é considerada indivisa até a sua partilha, por força do artigo 1.791 do Código Civil, sendo inviável que apenas um herdeiro, isoladamente, requeira a usucapião de imóvel possuído anteriormente pelo autor da herança, pois, com o falecimento, a posse do imóvel é transmitida a todos os herdeiros.
Havendo herdeiros a serem contemplados numa mesma herança, não é dado utilizar-se da usucapião, pois a herança é uma universalidade de coisas, achando-se em comum os bens do acervo hereditário, até a ultimação da partilha, onde teremos o condomínio de direito. Existem, por outro lado, esparsos julgados[viii] vêm admitindo o usucapião de bem em herança, de igual modo ao entendimento do usucapião entre condôminos, isto é, desde que haja intenção de ser dono exclusiva, de apenas um herdeiro (animus domini unici).
Outro ponto, não menos interessante, é no caso da inexistência de herdeiros até o quarto grau, ab intestato, isto é, sem deixar testamento. Caso de uma herança jacente ocupada por terceiro. Herança jacente é aquela entendida cujos sucessores ainda não são conhecidos, ou então renunciam a sua vocação hereditária. Compreende-se como um período transitório, um prazo de proteção aos herdeiros relapsos ou desconhecidos, até a sua substituição pela vacância.
Nessa linha, em não havendo herdeiros até o quarto grau, o início da prescrição aquisitiva do imóvel para verificação do usucapião, começa a correr pela abertura da sucessão (art. 1.791), ou seja, com o óbito do autor da herança[ix]. Outro entendimento consolidado é de que o terceiro na posse do imóvel, desde que comprovados os requisitos para o usucapião é parte interessada para figurar em embargos de terceiros para obstar a arrecadação do bem pelo Estado de herança vacante[x].
Cabe salientar, que a propriedade, assim como o direito patrimonial em geral, passa por um momento paradigmático, onde estão se moldando a luz dos valores esculpidos na Constituição Federal, dentre o qual o da função social da propriedade, essa mudança denominada pela doutrina de direito-civil-constitucional tende a modificar todos os preconceitos civilistas clássicos sobre os temas patrimoniais, eis que uma propriedade não utilizada, no caso, sequer em composse, não está cumprindo sua função social e não pode ser considerada aos princípios fundamentais regentes como imprescritível. Como bem ensina CELSO DE MELLO[xi]:
'Inércia, omissão e desinteresse do proprietário são sancionados pela perda do domínio, em favor, precisamente, daquele que, possuindo o bem pro suo, vem a dar-lhe a destinação e a utilização reclamadas pelo interesse social. A ratio do usucapião, inegavelmente, é a promoção do bem comum. A função social inerente à propriedade justifica a perda do domínio, em favor do possuidor, por via do usucapião.
Essa modificação estrutural da interpretação do Direito não é, contudo, recente, apesar do maior enfoque nos debates atuais. Já era, desde o início do século passado, prevista pelos juristas, como nas sábias palavras do visionário Rui Barbosa[xii]: “Já não se vê mais na sociedade um mero agente agregado, uma justaposição de unidades individuais, acasteladas cada qual no seu direito intratável, mas uma unidade orgânica, em que a esfera do indivíduo tem por limites inevitáveis, de todos os lados, a coletividade. O direito vai cedendo à moral, o indivíduo à associação, o egoísmo à sociedade humana.”
Não obstante, outro ponto necessário ao enfoque é o fato de, na maioria das vezes, as posses entre condôminos ou herdeiros ocorrer por força da confiança entre proprietário e possuidor, extraindo sempre a ideia da precariedade da sua posse, o que tornaria inviável a aquisição do usucapião.
Entretanto, a relativização de preceitos até então absolutos, através da ponderação entre os direitos individuais conflitantes, atinge, como não podia deixar de ser, certos efeitos da posse que eram considerados imutáveis. Como se observa no saneamento da posse precária. Entende-se como precária, em síntese, a posse injusta adquirida com base no abuso de confiança entre o proprietário e o detentor/possuidor. Sempre foi tida como um vício insanável na pretensão de aquisição por usucapião, ao contrário da posse clandestina e contestada, sanáveis, uma vez cessadas os seus obstáculos. Era inconcebível, de tal sorte, que um possuidor direto viesse ser declarado por sentença em ação de usucapião como proprietário de bem emprestado pelo comodante (possuidor indireto), independente do prazo de permanência no imóvel por aquele, pois detentor de posse ad interdicta, insanável.
Todavia, nota-se hoje uma ponderação a esse conceito. Defendem alguns a possibilidade de transformação do caráter da posse, inicialmente precária, existindo a desídia do proprietário somado a um aproveitamento econômico exclusivo do precarista, que passaria a ter exercício pleno, dos poderes inerentes à propriedade, cumprindo sua função social e legitimando o usucapião.
Tal modificação começa a ser presenciada paulatinamente em nossa jurisprudência, de onde se extraí as ideias centrais do julgado proferido pelo Superior Tribunal de Justiça[xiii], de lavra do eminente Ministro César Asfor Rocha:
“Usucapião extraordinário. Comprovação dos requisitos. Mutação da natureza jurídica da posse originária. Possibilidade. O usucapião extraordinário – art. 550, CC – reclama, tão-somente: a) posse mansa e pacífica, ininterrupta, exercida com animus domini; b) o decurso do prazo de vinte anos; c) presunção juris et de jure de boa-fé e justo título, ‘que não só dispensa a exibição desse documento como também proíbe que se demonstre sua inexistência.’ E, segundo o ensinamento da melhor doutrina, ‘nada impede que o caráter originário da posse se modifique’, motivo pelo qual o fato de ter havido no início da posse da autora um vínculo locatício, não é embaraço ao reconhecimento de que, a partir de um determinado momento, essa mesma mudou de natureza e assumiu a feição de posse em nome próprio, sem subordinação ao antigo dono e, por isso mesmo, com força ad usucapionem. Precedentes. Ação de usucapião procedente. Recurso especial conhecido, com base na letra ‘c’ do permissivo constitucional, e provido.”
Por fim, conclui-se, que a nova ordem jurídica vigente pautada na defesa dos interesses esculpidos na Constituição Federal torna necessária uma remodelação dos conceitos absolutos face aos novos princípios estruturais do Estado Democrático de Direito. Há que se observar se alguns cânones do direito privado colidem com princípios ora atuantes, em especial o do direito à moradia e da função social da propriedade. E nesse sentido deverá avançar os julgamentos e as reformas legislativas ao que se referem o usucapião como forma de aquisição de propriedade, socialização e dignidade da pessoa humana.
[xiii] STJ, RSTJ 143/370, grifamos. Tal voto foi seguido, por votação unânime, pelos Ministros Ruy Rosado de Aguiar, Aldir Passarinho Jr., Sálvio de Figueiredo Teixeira e Raphael Barros Monteiro. No mesmo sentido: TJRJ: "Usucapião – Posse – Mudança do título – Admissibilidade. Locatário que jamais pagou aluguel, ocupando a coisa como se fosse dono – Inexistência de oposição por parte do proprietário – Animus domini configurado – Voto vencido." (RT 690/140). Neste sentido: "Usucapião – Interversão – Mudança do título da posse – Possibilidade – CC, art. 492." (TJRJ, RJ 188/71); Ver também TJRJ, RT 528/189.